CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
ESTA PROGRAMAÇÃO FOI SUGERIDA PELO INSTITUTO MOREIRA SALES
Sobre os poemas e a leitura:
-‐ Todos os poemas selecionados fazem parte do livro A rosa do povo,
de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945. Grande parte do livro está
marcada pelo traumático quadro político dos anos em que os poemas foram escritos
– entre 1942 e 1945.
-‐ A leitura dos poemas no dia D, aniversário de Drummond – dia 31 de
outubro –, será uma comemoração dos 70 anos do
livro.
. Narrador 1 = vermelho
.
Narrador 2 = azul
. Narrador 1
e 2 = preto (divido entre os dois)
Há
apenas uma ocorrência de verde: quando os dois
devem ler ao mesmo tempo.
Obs. Quase
todos os poemas serão lidos na íntegra. Alguns poemas terão a leitura de apenas
algumas passagens estão marcados por linha pontilhada os lugares em que houve a
supressão de versos e/ou estrofes.
-‐ Os poemas estão agrupados por
blocos temáticos:
I. A Poesia
1.
“Consideração do poema” Narrador 1
2. “Procura da poesia” (fragmento) Narrador 2
II. Família/Corpo/Sujeito
3. “Retrato de família” – Narrador 1 e 2
4. “Consolo na praia ” -‐ Narrador 2
5. “Versos à boca da noite” – Narrador 1 e 2
III. Enigmas
6. “Carrego comigo”
-‐ Narrador 1
7. “Resíduo” – Narrador 1 e 2
8.
“O medo” -‐ Narrador
2
IV.
A guerra
9. “Carta a Stalingrado” – Narrador 1 e
2
10. “Visão 1944” -‐ Narrador 1
V.
Política/O
choque social
11. “Morte do leiteiro” -‐ Narrador 2
12 . “Nosso tempo” – Narrador 1 e 2
13. “A flor e a náusea” – Narrador 1 e 2
14. “Cidade
prevista” – Narrador 1 e 2
CONSIDERACÃO
DO POEMA
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra
carne
ou qualquer outra, que todas me
convêm. As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas,
autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho ou
apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o
orgulho, de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a
Vinicius sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua
gravata
chamejante. Me perco
em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são
jornais nem deslizar de lancha entre camélias: é toda a minha vida que joguei.
Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem ao
meio-dia em qualquer praça. É a lanterna em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças? É tudo meu. Ser
explosivo, sem fronteiras, por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face
branca, nas principiantes rugas. O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio, boiando em
tempos sujos.
Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis
lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos
longínquos, sentir que há ecos, poucos, mas cristal, não rocha apenas, peixes
circulando sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo sua
derrota, e dois ou três faróis, últimos! esperança do mar negro. Essa viagem é
mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras, secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta ouvido rente ao
chão. Mas é tão alto que as pedras o absorvem. Está na mesa aberta em livros,
cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O
bonde, a rua, o uniforme de colégio se transformam, são ondas de carinho te
envolvendo.
Como fugir ao mínimo
objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas
passam, eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo,
como casa, como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou
completo, me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de
segredos,
tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
PROCURA
DA POESIA
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol
estático,
não aquece nem
ilumina.
As afinidades, os aniversários, os
incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão
infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua
careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.
Nem me reveles teus
sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e
tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade,
deixa-a em paz.
O canto não é o
movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas
junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e
noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das
coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em
mentir. Não te aborreças.
Teu iate de marfim,
teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos
esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre
o espelho e a memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia. Que
se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os
poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive
com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te
provocam.
Espera que cada um se realize e
consume com seu poder de palavra
e seu poder de
silêncio.
Não forces o poema a desprender-se
do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema.
Aceita-o
como ele aceitará sua forma
definitiva e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces
secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela
resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e
conceito
elas se refugiaram na noite, as
palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
RETRATO
DE FAMÍLIA
Este
retrato de família está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai quanto
dinheiro ele ganhou.
Nas mãos dos tios não se percebem as
viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela, sem
memórias da monarquia.
Os meninos, como estão mudados. O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores
sonhos.
E João não é mais
mentiroso.
O jardim tornou-se fantástico. As flores são placas cinzentas. E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.
No semicírculo das cadeiras nota-se
certo movimento.
As crianças trocam de lugar, mas sem
barulho: é um retrato.
Vinte anos é um grande tempo. Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai
murchando, outra, sorrindo, se propõe.
Esses estranhos assentados, meus parentes? Não
acredito. São visitas se divertindo numa sala que se abre pouco.
Ficaram traços da
família perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.
A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens. Estão ali voluntariamente, saberiam —
se preciso —voar.
Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do
salão,
ir morar no fundo dos móveis ou no
bolso de velhos coletes.
A casa tem muitas
gavetas
e papéis, escadas compridas. Quem sabe a malícia das coisas,
quando a matéria se aborrece?
O retrato não me responde, ele me
fita e se contempla nos meus olhos empoeirados. E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram dos que restaram.
Percebo apenas a estranha ideia de família
viajando através da carne.
CONSOLO
NA PRAIA
Vamos, não chores...
A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas
a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro
amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem. Não
possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te
golpearam. Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado murmuraste um protesto
tímido. Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te – de
vez – nas águas. Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
VERSOS À
BOCA DA NOITE
Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada.
Rugas, dentes, calva... Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.
Escreverei sonetos de madureza?
Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre
mentiroso? Acreditarei em mitos? Zombarei do
mundo?
Há muito suspeitei o velho em mim. Ainda criança, já
me atormentava. Hoje estou só. Nenhum menino salta de minha vida, para
restaurá-la.
Mas
se eu pudesse recomeçar o dia! Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome... Vejo tudo
impossível e nítido, no espaço.
Lá onde não chegou minha ironia,
entre ídolos de rosto carregado, ficaste, explicação de minha vida, como os
objetos perdidos na rua.
As experiências se multiplicaram:
viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio, a
melancolia, amada e repelida,
e tanta indecisão entre dois mares, entre duas
mulheres, duas roupas. Toda essa mão para fazer um gesto que de tão frágil
nunca se modela,
e fica inerte, zona de desejo selada
por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor, se
despe sem qualquer curiosidade.)
Mas vêm o tempo e a
ideia de passado visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra
dentro de um cinema, subitamente.
E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris; enroscam-se no
sono e te perseguem, à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias, até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.
Esta casa, que miras de passagem, estará no Acre? na
Argentina? em ti? que palavra escutaste, aonde, quando? seria indiferente ou
solidária?
Um pedaço de ti rompe a neblina, voa
talvez para a Bahia e deixa outros pedaços, dissolvidos no atlas, em
País-do-riso e em tua ama preta.
Que confusão de coisas ao crepúsculo!
Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e
compô-las num todo sábio, posto que sensível:
uma ordem, uma luz,
uma alegria baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos
nem a renúncia às coisas que elegeu,
mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço,
um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo
comprada em sal, em rugas e cabelo.
CARREGO
COMIGO
Carrego
comigo há dezenas de anos
há centenas de anos o pequeno
embrulho.
Serão duas cartas? será uma flor?
será um retrato? um lenço talvez?
Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente
ou se foi furtado.
Se os anjos desceram trazendo-o nas
mãos, se boiava no rio,
se pairava no ar.
Não ouso entreabri-lo. Que coisa
contém,
ou se algo contém, nunca saberei.
Como poderia tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio
e também tão quente.
Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me
fascina e me deixa triste.
Guardar
um segredo em si e consigo,
não querer sabê-lo ou querer demais.
Guardar um segredo de seus próprios olhos, por baixo
do sono, atrás da lembrança.
A boca experiente saúda os amigos.
Mão aperta mão, peito se dilata.
Vem do mar o apelo, vêm das coisas gritos. O mundo te
chama: Carlos! Não respondes?
Quero responder.
A rua infinita vai além do mar. Quero caminhar.
Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
de jogá-lo ao fundo da primeira vala.
Ou talvez queimá-lo: cinzas se
dispersam e não fica sombra
sequer, nem remorso.
Ai, fardo sutil
que antes me carregas do que és carregado, para onde
me levas?
Por que não me dizes a
palavra dura
oculta em teu seio, carga
intolerável?
Seguir-te submisso por tanto caminho
sem saber de ti senão que te sigo.
Se agora te abrisses e te revelasses
mesmo em forma de
erro, que alívio seria!
Mas ficas fechado. Carrego-te à noite se vou para o
baile. De manhã te levo
para a escura fábrica de negro
subúrbio.
És, de fato, amigo secreto e
evidente.
Perder-te seria
perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre mas
levo uma coisa.
Não sei o que seja. Eu não a escolhi. Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.
Não estou vazio, não estou sozinho, pois anda comigo
algo indescritível.
RESÍDUO
De tudo ficou um pouco. Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da
rosa ficou um pouco.
Ficou um pouco de luz captada no
chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um
pouco (muito pouco.)
Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus
rotos,
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada,
de duas folhas de
grama, do maço
— vazio — de cigarros,
ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu
queixo no queixo de tua filha.
De teu áspero
silêncio
um pouco ficou, um pouco nos muros
zangados,
nas folhas, mudas,
que sobem.
Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana, dragão
partido, flor branca, de ruga na vossa testa, retrato.
Se tudo fica um
pouco, mas por que não ficaria
um pouco de
mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres, um pouco
de mim algures?
na consoante? no poço?
Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os
peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã,
este vidro de relógio partido em mil
esperanças,
este pescoço de cisne, este segredo
infantil... De tudo
ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção e abafa
o insuportável mau
cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível,
fica um pouco, e sob as
ondas ritmadas
e sob as nuvens e os
ventos
e sob as pontes e sob os túneis
o sob as labaredas e
sob o sarcasmo e sob a
gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o
cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas,
os asilos, as igrejas
triunfantes e sob tu
mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da
classe, fica sempre um
pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
O
MEDO
Em
verdade temos medo. Nascemos no escuro.
As existências são poucas: carteiro,
ditador, soldado. Nosso destino, incompleto.
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos
panos de medo. De medo, vermelhos rios Vadeamos.
Somos apenas uns homens e
a natureza traiu-‐nos.
Há as árvores, as fábricas, Doenças
galopantes, fomes.
Refugiamo-‐nos no amor, Este célebre sentimento, E o amor
faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.
Fazia frio em São Paulo... Nevava.
O medo, com sua capa, Nos dissimula e nos berça.
Fiquei com medo de ti, Meu companheiro moreno. De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.
Assim nos
criam burgueses. Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?
Vem, harmonia do medo, vem ó terror das estradas, susto na noite, receio
de águas
poluídas. Muletas
do homem só. Ajudai-‐nos, lentos
poderes do láudano. Até a canção medrosa
se parte,
e transe e cala-‐se.
Faremos casas de medo, duros tijolos de medo, medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.
E com asas de prudência, com resplendores covardes, atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.
O medo, com sua física, tanto produz: carcereiros, edifícios, escritores,
este poema, outras vidas.
Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem. O medo cristalizou-‐os.
Estátuas sábias, adeus.
Adeus: vamos para a frente, Recuando de olhos acesos. Nossos filhos tão felizes...
Fiéis
herdeiros do medo,
eles povoam a cidade. Depois da
cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas, dançando o
baile do medo.
CARTA A STALINGRADO
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes
cidades!
O mundo não acabou,
pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de
pó e de pólvora, e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem
enquanto outros,
vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está
nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas
cantam um mundo novo que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em
ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que
o estouro das bombas, na tua fria vontade de resistir.
Saber que resistes.
Que enquanto
dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela
manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares
de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena. Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas
prevenções e nossos confusos pensamentos distantes dá um enorme alento à alma
desesperada
e ao coração que duvida.
Stalingrado, miserável
monte de escombros, entretanto resplandecente! As belas cidades do mundo
contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu
pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios
não profanados, as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem
luta, aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.
Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o
teu nome nos derrama! Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta
a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de
criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando
nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem
pedaços negros de parede, mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos
ao sol,
ó minha louca Stalingrado!
A tamanha distância procuro, indago,
cheiro destroços sangrentos, apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde
há mãos soltas e relógios partidos, sinto-te como uma criatura humana, e que és
tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e
combate, contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos
mecânicos a criatura combate, contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a
criatura combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das
cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se
amarão e se defenderão contra tudo. Em teu chão calcinado onde apodrecem
cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
VISÃO 1944
Meus olhos são pequenos para ver A
massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso
oceânico esperando a passagem dos soldados.
Meus olhos
são pequenos para ver luzir na sombra a foice da invasão e os olhos no relógio,
fascinados,
ou as unhas brotando
em dedos frios.
Meus olhos são pequenos para ver o general com seu
capote cinza escolhendo no mapa uma cidade que amanhã será pó e pus no arame.
Meus olhos são pequenos para ver a bateria de rádio
prevenindo vultos a rastejar na praia obscura aonde chegam pedaços de navios.
Meus olhos são pequenos para ver o
transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios,
de bandagens para um porto da Itália onde se morre.
Meus olhos são pequenos para ver o corpo pegajento das
mulheres que foram lindas, beijo cancelado na produção de tanques e granadas.
Meus
olhos são pequenos para ver a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia, onde retratos,
cartas, dedos de pé boiam em sangue.
Meus olhos são pequenos para ver uma
casa sem fogo e sem janela sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião,
catre, assoalho.
Meus olhos são pequenos para ver os
milhares de casas invisíveis
na planície de neve
onde se erguia uma cidade, o amor e uma canção.
Meus olhos são pequenos para ver as fábricas tiradas
do lugar, levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.
Meus olhos são pequenos para ver na
blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.
Meus olhos são pequenos para ver o
deslizar do peixe sob as minas, e sua convivência silenciosa
com os que afundam,
corpos repartidos.
Meus olhos são pequenos para ver os
coqueiros rasgados e tombados entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.
Meus
olhos são pequenos para ver a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra,
prontos a seguir
para perto do muro — e o muro é branco.
Meus olhos são pequenos para ver essa fila de carne em
qualquer parte, de querosene, sal ou de esperança que fugiu dos mercados deste
tempo.
Meus olhos são pequenos para ver a
gente do Pará e de Quebec
sem notícia dos seus e perguntando ao
sonho, aos passarinhos, às ciganas.
Meus
olhos são pequenos para ver todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
que não pôde esperar a voz dos sinos.
Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos, proibidos de viver, mas em que a vida lateja
subterrânea e vingadora.
Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os
gritos roucos, os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que
todo exército.
Meus olhos são pequenos para ver toda
essa força aguda e martelante, a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.
Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo
te dispersas.
Meus olhos são pequenos para ver atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em
forma e profusão.
Meus olhos são pequenos para ver tuas
sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).
Meus olhos são pequenos para ver essa mensagem franca
pelos mares, entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.
Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e
sangue, outro mundo que brota, qual nelumbo
—mas veem, pasmam,
baixam deslumbrados.
MORTE
DO LEITEIRO
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo. Há muita
sede no país,
é preciso entregá-lo cedo. Há no
país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. Então o moço que é leiteiro de
madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas
garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono que
alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio trazer o
leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca para
todos criarem força na luta brava da cidade.
Na mão a garrafa branca não tem
tempo de dizer as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro, morador na Rua Namur,
empregado no entreposto, com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja
impulso de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo vai
deixando à beira das casas uma apenas mercadoria.
E como a porta dos fundos também escondesse gente que
aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco,
peguemos o corredor, depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro, que
barulho nada resolve.
Meu leiteiro tão
sutil
de passo maneiro e leve, antes
desliza que marcha.
É certo que algum rumor sempre se
faz: passo errado,
vaso de flor no caminho, cão latindo
por princípio, ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
Mas este acordou em pânico (ladrões
infestam o bairro), não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se
pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era
bom, não sei,
é tarde para saber.
Mas o homem perdeu o sono de todo, e
foge pra rua.
Meu Deus, matei um
inocente.
Bala que mata gatuno também serve
pra furtar a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame
médico, polícia não bota a mão
neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A
noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro
estatelado, ao relento, perdeu a
pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre
uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei. Por entre objetos
confusos, mal redimidos da noite,
duas cores se procuram, suavemente
se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos
aurora.
NOSSO TEMPO
I
Este é tempo de
partido, tempo de homens partidos.
.............................
II
Este é tempo de divisas, tempo de
gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
III
.............. É tempo de muletas.
IV
É tempo de meio silêncio, de boca
gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas, de céu
neutro, política
na maçã, no santo, no gozo, amor e
desamor, cólera branda, gim com água tônica, olhos pintados,
dentes de vidro, grotesca língua
torcida.
A isso chamamos:
balanço.
No beco,
apenas um muro, sobre ele a polícia. No céu da propaganda aves anunciam
a glória. No quarto,
irrisão e três
colarinhos sujos.
V
Escuta a hora
formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne,
legumes e tortas vitaminosas. Salta depressa do mar a bandeja de peixes
argênteos!
Os subterrâneos da
fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu
osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te,
mão de papel, é tempo de comida, mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se
recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem. O esplêndido negócio
insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não veem. É
sem cor e sem cheiro. Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no
telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora
espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher,
criança, homem, roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem,
mulher, roupa, homem imaginam
esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a
passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros
apagados, numa suposta cidade, imaginam.
................
Escuta
o horrível emprego do dia em todos os países de fala humana,
a falsificação das
palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a
propriedade é um bolo com flores, os bancos triturando suavemente o pescoço do
açúcar,
a constelação das formigas e
usurários, a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção
do basilisco, o homem feio, de mortal feiura,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
.................
VII
.............. Há
soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes
bálsamos, dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos bálsamos, recalcadas
dores ignóbeis, lesões que nenhum governo autoriza, não obstante doem,
melancolias
insubornáveis, ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho,
da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público?
nas poltronas? há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos
armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos, vai molhar, na roça
madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em
poça amarga.
E dentro do pranto minha face
trocista, meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso
lirismo deteriorado, que polui a essência mesma dos diamantes.
VII
O poeta
declina de toda responsabilidade na
marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições,
símbolos e outras armas promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma
floresta, um verme.
A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas
roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo? Posso, sem
armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e
espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros
são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os
doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem
ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres
mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em
muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves,
que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em
casa. Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo,
inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam
anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na
rua!
Passem de longe,
bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os
negócios, garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe. Suas pétalas não
se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país
às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens
maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em
pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
CIDADE PREVISTA
Irmãos, cantai esse mundo que não
verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos, talvez mais... não tenho
pressa. Um mundo enfim
ordenado, uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos, uma terra
sem bandeiras, sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre,
sem ouro, um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade, a
multiplicidade toda
que há dentro de cada um. Uma cidade sem portas, de casas sem
armadilha, um país de riso e glória
como nunca houve
nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.
muito legal. Lourdes
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ResponderExcluiro máximo adorei
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