quinta-feira, 22 de outubro de 2015

31 DE OUTUBRO - DIA D - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Fica nossa homenagem ao grande de eterno poeta brasileiro
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE.
ESTA PROGRAMAÇÃO FOI SUGERIDA PELO INSTITUTO MOREIRA SALES

Sobre os poemas e a leitura:


Todos os poemas selecionados fazem parte do livro A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945. Grande parte do livro está marcada pelo traumático quadro político dos anos em que os poemas foram escritos – entre 1942 e 1945.

   A leitura dos poemas no dia D, aniversário de Drummond dia 31 de outubro –, será uma comemoração dos 70 anos do livro.

. Narrador 1 = vermelho
. Narrador 2 = azul   
. Narrador 1 e 2 = preto (divido entre os dois)

Há apenas uma ocorrência de verde: quando os dois devem ler ao mesmo tempo.

Obs. Quase todos os poemas serão lidos na íntegra. Alguns poemas terão a leitura de apenas algumas passagens estão marcados por linha pontilhada os lugares em que houve a supressão de versos e/ou estrofes.


   Os poemas estão agrupados por blocos temáticos:



I.  A Poesia

1.      “Consideração do poema” Narrador 1
2.      “Procura da poesia” (fragmento) Narrador 2


II. Família/Corpo/Sujeito

3.  “Retrato de família” – Narrador 1 e 2
4.  “Consolo na praia Narrador 2
5.  “Versos à boca da noite” – Narrador 1 e 2

III. Enigmas

6.  “Carrego comigo” Narrador 1
7.   “Resíduo” – Narrador 1 e 2



8.   “O medo” Narrador 2


IV.  A guerra

9.   “Carta a Stalingrado” –  Narrador 1 e 2
10. “Visão 1944” Narrador 1


V.   Política/O choque social

11. “Morte do leiteiro” Narrador 2
                  12 . “Nosso tempo” – Narrador 1 e 2
13.  “A flor e a náusea” – Narrador 1 e 2
14.  “Cidade prevista” – Narrador 1 e 2


CONSIDERACÃO DO POEMA


Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm. As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem, no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.

Uma pedra no meio do caminho ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho, de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.
São todos meus irmãos, não são jornais nem deslizar de lancha entre camélias: é toda a minha vida que joguei.

Estes poemas são meus. É minha terra
e é ainda mais do que ela. É qualquer homem ao meio-dia em qualquer praça. É a lanterna em qualquer estalagem, se ainda as há.
– Há mortos? há mercados? há doenças? É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras, por que falsa mesquinhez me rasgaria?
Que se depositem os beijos na face branca, nas principiantes rugas. O beijo ainda é um sinal, perdido embora,
da ausência de comércio, boiando em tempos sujos.

Poeta do finito e da matéria,
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, boca tão seca, mas ardor tão casto.
Dar tudo pela presença dos longínquos, sentir que há ecos, poucos, mas cristal, não rocha apenas, peixes circulando sob o navio que leva esta mensagem,
e aves de bico longo conferindo sua derrota, e dois ou três faróis, últimos! esperança do mar negro. Essa viagem é mortal, e começá-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio a milhões e milhões de formas raras, secretas, duras. Eis aí meu canto.


Ele é tão baixo que sequer o escuta ouvido rente ao chão. Mas é tão alto que as pedras o absorvem. Está na mesa aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua, o uniforme de colégio se transformam, são ondas de carinho te envolvendo.

Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam, eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa, como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.

Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo, me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina, o povo, meu poema, te atravessa.


PROCURA DA POESIA


Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem. O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam. A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir. Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância. Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia. Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.


Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras. Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


RETRATO DE FAMÍLIA



Este retrato de família está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem as viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela, sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados. O rosto de Pedro é tranquilo,
usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico. As flores são placas cinzentas. E a areia, sob pés extintos,
é um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras nota-se certo movimento.
As crianças trocam de lugar, mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo. Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando, outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados, meus parentes? Não acredito. São visitas se divertindo numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços da família perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
em vão prende suas personagens. Estão ali voluntariamente, saberiam — se preciso —voar.


Poderiam sutilizar-se
no claro-escuro do salão,
ir morar no fundo dos móveis ou no bolso de velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
e papéis, escadas compridas. Quem sabe a malícia das coisas, quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde, ele me fita e se contempla nos meus olhos empoeirados. E no cristal se multiplicam

os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha ideia de família

viajando através da carne.


CONSOLO NA PRAIA


Vamos, não chores...
A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem. Não possuis casa, navio, terra. Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas. Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.


VERSOS À BOCA DA NOITE



Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.

Escreverei sonetos de madureza? Darei aos outros a ilusão de calma?
Serei sempre louco? sempre mentiroso? Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo?

Há muito suspeitei o velho em mim. Ainda criança, já me atormentava. Hoje estou só. Nenhum menino salta de minha vida, para restaurá-la.

Mas se eu pudesse recomeçar o dia! Usar de novo minha adoração,
meu grito, minha fome... Vejo tudo impossível e nítido, no espaço.

Lá onde não chegou minha ironia, entre ídolos de rosto carregado, ficaste, explicação de minha vida, como os objetos perdidos na rua.

As experiências se multiplicaram: viagens, furtos, altas solidões,
o desespero, agora cristal frio, a melancolia, amada e repelida,


e tanta indecisão entre dois mares, entre duas mulheres, duas roupas. Toda essa mão para fazer um gesto que de tão frágil nunca se modela,

e fica inerte, zona de desejo selada por arbustos agressivos.
(Um homem se contempla sem amor, se despe sem qualquer curiosidade.)

Mas vêm o tempo e a ideia de passado visitar-te na curva de um jardim.
Vem a recordação, e te penetra dentro de um cinema, subitamente.

E as memórias escorrem do pescoço,


do paletó, da guerra, do arco-íris; enroscam-se no sono e te perseguem, à busca de pupila que as reflita.

E depois das memórias vem o tempo trazer novo sortimento de memórias, até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi.

Esta casa, que miras de passagem, estará no Acre? na Argentina? em ti? que palavra escutaste, aonde, quando? seria indiferente ou solidária?

Um pedaço de ti rompe a neblina, voa talvez para a Bahia e deixa outros pedaços, dissolvidos no atlas, em País-do-riso e em tua ama preta.

Que confusão de coisas ao crepúsculo! Que riqueza! sem préstimo, é verdade.
Bom seria captá-las e compô-las num todo sábio, posto que sensível:

uma ordem, uma luz, uma alegria baixando sobre o peito despojado.
E já não era o furor dos vinte anos nem a renúncia às coisas que elegeu,

mas a penetração no lenho dócil,
um mergulho em piscina, sem esforço, um achado sem dor, uma fusão,
tal uma inteligência do universo comprada em sal, em rugas e cabelo.


CARREGO COMIGO



Carrego comigo há dezenas de anos
há centenas de anos o pequeno embrulho.

Serão duas cartas? será uma flor? será um retrato? um lenço talvez?

Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente ou se foi furtado.

Se os anjos desceram trazendo-o nas mãos, se boiava no rio,
se pairava no ar.

Não ouso entreabri-lo. Que coisa contém,
ou se algo contém, nunca saberei.

Como poderia tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio e também tão quente.

Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me fascina e me deixa triste.

Guardar um segredo em si e consigo,
não querer sabê-lo ou querer demais.

Guardar um segredo de seus próprios olhos, por baixo do sono, atrás da lembrança.

A boca experiente saúda os amigos.


Mão aperta mão, peito se dilata.

Vem do mar o apelo, vêm das coisas gritos. O mundo te chama: Carlos! Não respondes?

Quero responder.
A rua infinita vai além do mar. Quero caminhar.

Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
de jogá-lo ao fundo da primeira vala.

Ou talvez queimá-lo: cinzas se dispersam e não fica sombra
sequer, nem remorso.

Ai, fardo sutil
que antes me carregas do que és carregado, para onde me levas?

Por que não me dizes a palavra dura
oculta em teu seio, carga intolerável?

Seguir-te submisso por tanto caminho sem saber de ti senão que te sigo.

Se agora te abrisses e te revelasses
mesmo em forma de erro, que alívio seria!

Mas ficas fechado. Carrego-te à noite se vou para o baile. De manhã te levo

para a escura fábrica de negro subúrbio.


És, de fato, amigo secreto e evidente.

Perder-te seria
perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre mas levo uma coisa.

Não sei o que seja. Eu não a escolhi. Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.

Não estou vazio, não estou sozinho, pois anda comigo algo indescritível.


RESÍDUO



De tudo ficou um pouco. Do meu medo. Do teu asco. Dos gritos gagos. Da rosa ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco (muito pouco.)

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato se cobriu. Ficaram poucas roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama, do maço
— vazio — de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco. Fica um pouco de teu queixo no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo no pires de porcelana, dragão partido, flor branca, de ruga na vossa testa, retrato.

Se tudo fica um pouco, mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem que leva ao norte, no barco, nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres, um pouco de mim algures?
na consoante? no poço?


Um pouco fica oscilando na embocadura dos rios e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco. Não muito: de uma torneira pinga esta gota absurda, meio sal e meio álcool, salta esta perna de rã,
este vidro de relógio partido em mil esperanças,

este pescoço de cisne, este segredo infantil... De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo. Cabelo na minha manga, de tudo ficou um pouco; vento nas orelhas minhas, simplório arroto, gemido de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos: campânula, alvéolo, cápsula de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco.


Oh abre os vidros de loção e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
o sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte de escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


O MEDO


Em verdade temos medo. Nascemos no escuro.
As existências são poucas: carteiro, ditador, soldado. Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo. De medo, vermelhos rios Vadeamos.

Somos apenas uns homens e a natureza traiu-­‐nos.
Há as árvores, as fábricas, Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-­‐nos no amor, Este célebre sentimento, E o amor faltou: chovia,
Ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo... Nevava.
O medo, com sua capa, Nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti, Meu companheiro moreno. De nos, de vós, e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses. Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto? E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo, vem ó terror das estradas, susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-­‐nos, lentos poderes do láudano. Até a canção medrosa


se parte, e transe e cala-­‐se.

Faremos casas de medo, duros tijolos de medo, medrosos caules, repuxos, ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência, com resplendores covardes, atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física, tanto produz: carcereiros, edifícios, escritores,
este poema, outras vidas.

Tenhamos o maior pavor.
Os mais velhos compreendem. O medo cristalizou-­‐os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente, Recuando de olhos acesos. Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade. Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas, dançando o baile do medo.



CARTA A STALINGRADO


Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora, e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado, seus peitos que estalam e caem
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas, na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena. Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente! As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados, as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta, aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama! Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas, todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede, mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!


A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos, apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos, sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate, contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate, contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo. Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.


VISÃO 1944


Meus olhos são pequenos para ver A massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico esperando a passagem dos soldados.

Meus olhos são pequenos para ver luzir na sombra a foice da invasão e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.

Meus olhos são pequenos para ver o general com seu capote cinza escolhendo no mapa uma cidade que amanhã será pó e pus no arame.

Meus olhos são pequenos para ver a bateria de rádio prevenindo vultos a rastejar na praia obscura aonde chegam pedaços de navios.

Meus olhos são pequenos para ver o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens para um porto da Itália onde se morre.

Meus olhos são pequenos para ver o corpo pegajento das mulheres que foram lindas, beijo cancelado na produção de tanques e granadas.

Meus olhos são pequenos para ver a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia, onde retratos, cartas, dedos de pé boiam em sangue.

Meus olhos são pequenos para ver uma casa sem fogo e sem janela sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.

Meus olhos são pequenos para ver os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia uma cidade, o amor e uma canção.

Meus olhos são pequenos para ver as fábricas tiradas do lugar, levadas para longe, num tapete,


funcionando com fúria e com carinho.

Meus olhos são pequenos para ver na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho e se desfolhará no céu de outono.

Meus olhos são pequenos para ver o deslizar do peixe sob as minas, e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.

Meus olhos são pequenos para ver os coqueiros rasgados e tombados entre latas, na areia, entre formigas incompreensivas, feias e vorazes.

Meus olhos são pequenos para ver a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro — e o muro é branco.

Meus olhos são pequenos para ver essa fila de carne em qualquer parte, de querosene, sal ou de esperança que fugiu dos mercados deste tempo.

Meus olhos são pequenos para ver a gente do Pará e de Quebec
sem notícia dos seus e perguntando ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.

Meus olhos são pequenos para ver todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha que não pôde esperar a voz dos sinos.

Meus olhos são pequenos para ver países mutilados como troncos, proibidos de viver, mas em que a vida lateja subterrânea e vingadora.

Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos, os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.

Meus olhos são pequenos para ver toda essa força aguda e martelante, a rebentar do chão e das vidraças,


ou do ar, das ruas cheias e dos becos.

Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura, tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.

Meus olhos são pequenos para ver  atrás da guerra, atrás de outras derrotas, essa imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.

Meus olhos são pequenos para ver tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto, vai pastoreando sonos e trabalhos).

Meus olhos são pequenos para ver essa mensagem franca pelos mares, entre coisas outrora envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.

Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue, outro mundo que brota, qual nelumbo
—mas veem, pasmam, baixam deslumbrados.


MORTE DO LEITEIRO


Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. Então o moço que é leiteiro de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro, morador na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos também escondesse gente que aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro…
Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor sempre se faz: passo errado,


vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro. Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão
neste filho de meu pai. Está salva a propriedade. A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro
estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite,
duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora.


NOSSO TEMPO



I
Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.

.............................


II
Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos.

III
.............. É tempo de muletas.


IV
É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas, de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo, amor e desamor, cólera branda, gim com água tônica, olhos pintados,
dentes de vidro, grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro, sobre ele a polícia.  No céu da propaganda aves anunciam
a glória. No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.


V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.


As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas. Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida, mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem. O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não veem. É sem cor e sem cheiro. Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem, roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se, últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.

................

Escuta o horrível emprego do dia em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores, os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários, a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco, o homem feio, de mortal feiura,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI
.................

VII
.............. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos, dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos bálsamos, recalcadas dores ignóbeis, lesões que nenhum governo autoriza, não obstante doem,
melancolias insubornáveis, ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.


Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas? há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos, vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista, meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado, que polui a essência mesma dos diamantes.


VII
O poeta
declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta, um verme.


A FLOR E A NÁUSEA


Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo? Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida. Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los? Tomei parte em muitos, outros escondi. Alguns achei belos, foram publicados. Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa. Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista. Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem.


Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.


CIDADE PREVISTA


Irmãos, cantai esse mundo que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos, talvez mais... não tenho pressa. Um mundo enfim ordenado, uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos, uma terra sem bandeiras, sem igrejas nem quartéis,
sem dor, sem febre, sem ouro, um jeito só de viver,
mas nesse jeito a variedade, a multiplicidade toda
que há dentro de cada um. Uma cidade sem portas, de casas sem armadilha, um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia

o país de todo homem.

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